Xaué
- jacmoreira2001
- 3 de mar.
- 4 min de leitura
Já está. Acabou. E parece que não aconteceu. Do nada dou por mim aqui, no aeroporto de Luanda a apanhar a seca da minha vida numa escala de 8 horas de regresso a (outra) casa, depois de uma experiência verdadeiramente única. Literalmente. Mais ninguém a viveu, só eu.
A despedida custou-me horrores. Um pedaço de mim ficou em São Tomé. É uma sensação muito diferente. Sinto muitas coisas, mas a sensação mais intensa é de que me deram uma nova família e que me arrancaram dos braços logo a seguir. 5 meses e meio foi o tempo que vivi naquele paraíso Natural, com aquelas pessoas que têm tão pouco e que me deram tanto. Foi na ilha do centro do mundo, onde encontrei a forma mais pura de Amor.
Encontrei uma família, que me tratou como se fosse deles. Chamavam-me “a filha do meio” e eu via naqueles pais Santomenses os meus pais portugueses. O filho mais velho tornou-se um irmão para mim, e por todos os outros filhos eu nutro um amor que nunca pensei sentir por tanta gente que não é do meu sangue com tanta intensidade. No meu último dia, prepararam-me um jantar com os meus pratos preferidos santomenses, dançamos muito e convidaram-me para ficar lá a dormir. A mãe passou a noite inteira a preparar comida para eu levar para Portugal. Esta mãe chorou muito no nosso último abraço, assim como a minha mãe chorou no aeroporto de Lisboa.
Encontrei uma amiga, com quem tive a sorte de trabalhar e de quem vou sentir muita falta. Tem apenas 21 anos mas é uma autêntica Mulher de armas. Não tem uma saúde muito estável e tem problemas bem mais graves do que eu alguma vez tive e é a pessoa que mais me fez rir nestes últimos meses. Ela é uma autêntica inspiração para mim e quando for grande quero ser como ela.
Encontrei um “treinador”, com quem aprendi muito sobre surf. Fez-me apaixonar pelo desporto ainda mais e devo-lhe a minha evolução. Não desistiu de mim e teve muita paciência para os meus damas no mar. Introduziu-me a uma nova comunidade onde também me senti em casa.
Encontrei um grupo de meninas, jovens e algumas já mulheres, que estão a fazer um caminho muito bonito de emancipação e aprendizagem dos seus direitos e do seu valor. Acompanhar e ajudar estas raparigas fez toda esta experiência valer muito a pena e dá-me um grande sentido de missão cumprida.
Encontrei toda uma comunidade que me fez sentir bem-vinda. E que, apesar de todas as falhas deste país, conseguem ser mestres em dar. Pode faltar água, eletricidade, comida, boa governação, segurança, uma rede de transportes eficiente, desenvolvimento, etc. Mas se há coisa que não falta é amor.
Tudo isto, em troca de nada. Todo este amor que me chegou foi gratuito. O único pagamento é esta dor do adeus com que não estou a conseguir lidar.
Escrevo estas palavras em lágrimas. Ainda nem cheguei a Portugal e toda esta experiência me parece tão distante. As memórias que guardo (tantas!) passam à frente dos meus olhos fechados como pequenos flashbacks de algo inventado.(Sim estou a ser melodramática mas dêem-me um desconto, acabei de sair de lá) Como se tivesse acordado de um sono profundo de 6 meses e tudo isto tivesse sido um sonho. Mas não foi e tenho marcas bem evidentes de que foi tudo real. As cicatrizes que tenho nas pernas dos dias de surf mais azarados, a lama que ainda vem nos meus pés da manhã chuvosa com que fomos presenteados no nosso último dia, a areia da praia de 7 ondas (a areia mais chata do mundo, que só sai com lixa) ainda colada às minhas unhas, as picadas de mosquito que conseguem ocupar cerca de 80% da minha pele e a falta de espaço de armazenamento do meu telemóvel que usei até ao limite. Sobretudo há um grande misto de alegria, tristeza e saudade que me arrebatam e não deixam dúvidas: aconteceu.
Penso como será o meu regresso. Dizem que é mais duro voltar para Portugal do que chegar a São Tomé. Será o meu caso? Como será voltar a estar no trânsito por exemplo? Ver prédios, estradas alcatroadas com mais de uma faixa, centros comerciais, enfim, voltar para um país desenvolvido. Apercebi-me que não tinha noção do quão desenvolvido é o meu país antes de chegar a África. Coisas tão simples que fazem parte da minha rotina em Portugal como correr para apanhar um comboio ou chamar um uber, são impensáveis em São Tomé. Estou muito entusiasmada por voltar a ver a minha família e amigos que me esperam e voltar a poder estar com eles quando quiser, sem ter que pensar nisso como algo distante. Estou entusiasmada por poder voltar a pegar no carro e visitar os meus avós, ir passear com a minha mãe, tocar guitarra com o meu pai, cantar aos altos berros com a minha irmã, almoços de família, ir ao cinema com as minhas amigas, combinar cafés e copos com os meus amigos.
Todas estas coisas eu gostava que as pessoas que deixo em São Tomé pudessem ter a oportunidade de as viver também. Não no sentido de serem “uns coitadinhos que nunca vão saber o que é um comboio na vida”, acho que essa visão não faz sentido até porque eles têm outros tipos de privilégios e vivem felizes à sua maneira com o que têm. Mas sim no sentido de, tal como eles me mostraram a sua terra e o seu modo de viver orgulhosamente e bem, eu quero mostrar-lhes a minha!
Vou daqui de coração cheio, muito feliz com o que vivi e com uma grande certeza de que um dia voltarei. Vou também entusiasmada para abraçar a minha família e amigos e para a próxima etapa da minha vida que se aproxima.
Na minha despedida, quando disse o último adeus lavada em lágrimas, virei costas e ouvi o som de água a cair no chão. E então o Gui (pescador, pai de família, faz-me muito lembrar o meu pai) disse-me “sabes o que fiz agora? atirei água para o chão. Aqui em São Tomé jogamos água no chão para desejar boa sorte, faz-se muito no aeroporto e quando as pessoas viajam. Então eu fiz e estou-te a dizer que fiz porque podias não saber desta tradição. Vai com Deus, vai leve-leve.”
Xaué, São Tomé <3
Lindo filha.
Essa riqueza de experiências e de amor que te deram ficará contigo para sempre.
Mas deixa-ne ser egoísta e dizer ainda bem que já cá estás.😘
Até eu fiquei emocionada com este texto.
Vaia agora começar a aventura de voltar ao teu mundo, mas com olhar diferente. Porque todos as pessoas que conheceste e tudo o que viveste em São Tomé veio contigo, no teu coração.
Tenho muito orgulho de ti.
Beijinhos, Tia e Madrinha.